Do Boticário ao Farmacêutico

Na área da saúde, uma das primeiras preocupações da humanidade foi o desejo de buscar procedimentos que possibilitassem minimizar o sofrimento ocasionado pelas doenças e que garantissem a sua sobrevivência. 

A concepção das primeiras civilizações a respeito dos males causados pelas doenças possuía conotação mágico-religiosa, devotando ao sobrenatural sua origem. Acreditavam que suas patologias eram ocasionadas pela necessidade de provação determinada pelos espíritos e, dessa forma, que a única maneira de cura seria a ajuda divina. Através de rituais, os pajés, sacerdotes e feiticeiros da época - mediadores entre o homem e os deuses - preparavam chás, poções, incensos e confeccionavam amuletos, objetivando afastar os maus espíritos causadores das moléstias. Com isso, surgiu um laço muito profundo entre a religião e o uso de substâncias, principalmente de origem vegetal, advindas da natureza. Essa atividade era envolta de mistérios, cujo conhecimento não era permitido aos demais membros da tribo.

Ao observar a evolução das civilizações primitivas, verifica-se que, com o decorrer do uso de plantas na obtenção de cura das doenças, maior atenção foi dada a essas substâncias, sendo que a importância da intervenção divina tendia a retroceder. O homem passou a crer que a natureza seria responsável por prover os meios para amenizar seu sofrimento, fornecendo de forma simbólica, melhor indicação para o seu uso como medicamento. Os primeiros praticantes que faziam uso de drogas classificavam-nas de acordo com suas características e, como muitas dessas substâncias tinham sabor ou odor desagradável e até repugnantes, houve a preocupação em alterar as formulações dos medicamentos, visando a sua melhor aceitação por parte do paciente. Surgiu, dessa forma, a Arte Farmacêutica. 

Ao longo da história da Farmácia - a partir do período religioso, filosófico, experimental e científico - observa-se a preocupação na codificação e padronização de procedimentos na produção de medicamentos.

Na época Filosófica, a mitologia consagra Hipócrates como o Pai da medicina, pela descrição detalhada que fez de muitas doenças e, principalmente, por considerar a saúde e a moléstia independentes de forças sobrenaturais, aconselhando a tomar sempre a natureza como guia na escolha dos remédios. 

Durante muitos séculos o Cristianismo exerceu profunda influência sobre a medicina, que volta a ter enfoque telúrgico, pois as esperanças de cura baseavam-se no culto dos santos e das relíquias. 

Cláudio Galeno
Outro marco histórico, no segundo século depois de Cristo, é determinado por Cláudio Galeno (135-201). A partir das viagens que realizava com freqüência à Ásia menor, descreveu muitos medicamentos e fórmulas, cujos métodos de preparação originaram a Farmácia galênica. Para ele, o temperamento de cada indivíduo resultava da mistura ou crase de quatro elementos do corpo humano: o sangue, a bílis, a pituíta e a atrabílis, daí o temperamento próprio - a idiossincrasia. Para Galeno, a doença não era senão um desequilíbrio entre aqueles humores, e ao médico competia apenas reconquistar o equilíbrio 
através dos medicamentos. Galeno introduziu a polifarmácia, termo empregado à fórmula farmacêutica que encerra um número muito grande de componentes, em geral sem base científica. 

De Galeno até a Renascença a religião dominava o mundo, tanto política como intelectualmente. Nessa época acreditava-se em verdades absolutas, que não podiam ser questionadas. Sendo que, somente durante a Reforma, quando as idéias religiosas começaram a ser indagadas, é que se desenvolveu o pensamento com bases científicas. 

Ao longo da constatação da importância da utilização de fármacos e do crescente desenvolvimento das ciências na Europa, verifica-se a utilização empírica das plantas com fins terapêuticos, a partir da ocupação e exploração do continente americano. No século XV, os portugueses, depois os espanhóis, empreenderam grandes expedições, beneficiados com a invenção das caravelas e da bússola, que permitiram as viagens a longas distâncias por mares até então desconhecidos. 

Os antecedentes históricos da farmácia no Brasil, apesar de imprecisos, apontam para a utilização, desde a época do descobrimento, de raízes e folhas com propriedades curativas conhecidas pelos pajés, aproveitando o grande arsenal de ervas medicinais disponíveis no país. A chegada dos colonizadores portugueses ao Brasil trouxe novas concepções de saber e da prática de saúde. Esse novo pensamento promoveu alterações na atenção ao paciente, que passou a serem prestados por físicos, cirurgiões, barbeiros, boticários e até por curiosos. 


Por todo o período do Brasil Colônia até a terceira década do século XIX, as casas que comercializavam as drogas eram conhecidas como boticas e a pessoa que preparava ou vendia os medicamentos, de acordo com a farmacopéia, era conhecida por boticário. Devido à promulgação da Constituição de 1824, que facilitava a obtenção dos alvarás de funcionamento, observa-se uma grande proliferação de boticas.


Essa foi uma época marcante para a profissão farmacêutica que como conseqüência da Lei de 03 de outubro de 1832, da regência, em nome do Imperador D. Pedro II, o ensino de Farmácia foi institucionalizado com a criação dos cursos de Farmácia vinculados às Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Em 1837 foram diplomados os sete primeiros farmacêuticos brasileiros. Tais cursos tinham a duração de três anos e, em seu currículo, constavam disciplinas básicas direcionadas aos conhecimentos fundamentais para o exercício da arte de formular. Posteriormente surge, em 1896, a Escola de Farmácia de Porto Alegre e, em 1899, a Escola Livre de Farmácia de São Paulo.

1900-1924
Prédio da antiga sede da Faculdade de Medicina, localizado na rua General Vitorino, no centro da capital. No próximo dia 25 de julho, a instituição criada a partir da Escola de Partos da Santa Casa e da Escola de Farmácia de Porto Alegre, irá completar 110 anos de fundação. Foto: Acervo Museu UFRGS

Os cursos privilegiavam matérias que visavam à formação de profissionais que dominassem a tecnologia de produção dos medicamentos da época: pesquisa de substâncias ativas; dosagem; aviamento de fórmulas magistrais e oficinas e, não raro, de substituição ao médico no atendimento da população. Do seu surgimento até 1924, foram várias reformas ocorridas no ensino de Farmácia. 


A emergência das escolas de formação possibilitaria que os estabelecimentos farmacêuticos só funcionassem tendo à frente e sob a sua responsabilidade, um profissional diplomado. Na prática, porém, sempre persistiu a desvinculação da necessidade do diploma para o exercício profissional, devido à falta de fiscalização adequada. 


Verifica-se, nessa época, o processo de expansão industrial, intensificado no Brasil nas décadas de 40 e 50. A modernização do sistema produtivo no país que de 1945 a 1960 assume o perfil do que se convencionou denominar de modelo de substituição de importações, o qual, aliado à grande evolução científica - que permitiu a descoberta e comercialização de inúmeros fármacos novos, que modificaram a Medicina - promove profundas e aceleradas mudanças sociais, parâmetros fundamentais para a compreensão do que ocorreu com a profissão e o ensino farmacêutico, a partir desse período. 

No decorrer desta caminhada - desenvolvimento da Farmácia no Brasil - verificou-se que as boticas, onde os boticários pesquisavam e manipulavam as fórmulas extemporâneas, foram gradualmente sendo substituídas por dois outros tipos de estabelecimentos - os Laboratórios Farmacêuticos, responsáveis pela pesquisa, síntese e produção de medicamentos, e a Farmácia, local de dispensação de fármacos. 

De um lado, a instalação de indústrias farmacêuticas no Brasil foi caracterizada por um processo rápido de desnacionalização, que se refletiu no reduzido número de profissionais formados no país em exercício nessa área. Por outro, os farmacêuticos que atuavam nas Farmácias encontraram-se privados das funções de pesquisa e síntese de medicamentos, passando a exercer exclusivamente a comercialização de medicamentos, de forma desvinculada da assistência à saúde. 

As conseqüências decorrentes desse processo são detectadas a partir de uma tendência de concentração da atuação profissional na área de Análises Clínicas, desviando a formação do profissional farmacêutico do seu eixo básico, o medicamento. 
O afastamento do profissional das funções inerentes à dispensação e atenção farmacêutica é, portanto, resultado de fatores econômicos, políticos e educacionais. Os cursos de Farmácia, durante a graduação, continuavam a transmitir conhecimentos adaptados à síntese e produção de medicamentos, sem conseguir instrumentalizar o profissional para sua atuação como assistente da saúde da população. 

A partir da década de 80, inicia-se um amplo debate acerca da formação do farmacêutico e sua atuação na dispensação de fármacos. Um novo paradigma de assistência farmacêutica passa a ser defendido, tendo por base o Projeto de Saúde para todos no ano 2000, proposto pela Organização Mundial da Saúde - OMS. 

As inovações contidas nessa proposta vêm exigindo a revisão das Diretrizes Curriculares dos Cursos de Farmácia, visando a adaptá-las à formação de profissionais Farmacêuticos críticos, competentes e capazes de contribuir para que se atinja a meta de sistema público de saúde eficaz e de qualidade para toda a população. 

No contexto brasileiro, diferente dos países que já possuem há muito tempo instituições educacionais consolidadas no âmbito farmacêutico, o problema básico ainda é como criar um sistema educacional que corresponda à urgência das necessidades e demanda educativa, em grande parte reprimida.



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